ANÁLISE: Notas sobre a eleição presidencial na Nicarágua em 2016

Por Simone da Silva Ribeiro Gomes1

Na noite de 6 de novembro de 2016, em Manágua, capital da Nicarágua, a cena é inquietante: de um lado celebrações de vitória do FSLN, em um evento na importante avenida 19 de Julio2, em que uma maioria de militantes da Juventude Sandinista canta e dança canções do período revolucionário (1979-1990), a celebrar mais uma vez a vitória de seu partido. De outro lado, um silêncio profundo no resto da cidade, retrato, talvez, de uma eleição contestada, clamada por muitos como de cartas marcadas3. Em um colégio eleitoral na região da Antigua Manágua, uma repóter da CNN ensaia várias vezes “as atuais eleições se deram em um contexto polêmico”, enquanto o movimento é escasso4 para votar no próximo presidente. De certa forma, polêmico é um adjetivo importante, mas que falha em dimensionar essa eleição, que longe de consolidar um sistema democrático, parece ter aberto espaço para profundos questionamentos sobre o governo de Daniel Ortega.

As eleições presidenciais na Nicaragua foram celebradas em meio a um clima ambíguo de festividade da certeza antecipada da vitória da Frente Sandinista de Liberação Nacional (FSLN) e de tristeza frente à suposta farsa eleitoral. Como me conta uma ativista casada com um ex-guerrilheiro sandinista “essa é a primeira vez que vejo as eleições assim, tão vazias, sem clima nenhum, parece 25 de dezembro”. Não é à toa que a jovem aponta esse relativo vazio eleitoral, dado que a justiça eleitoral havia recentemente obrigado o candidato da FSLN, re-eleito pela quarta vez, Daniel Ortega e sua esposa Rosamaria Murillo, como vice-presidente, a retirar toda propaganda eleitoral do país, objetivo cumprido parcialmente. Ainda é possível, às vesperas da eleição, observar alguns cartazes eleitorais, como do candidato pelo Partido Conservador Erik Cabezas, dentre outras candidaturas de menor expressão. A propaganda disfarçada de Daniel e Rosamaria – conhecida popularmente como Chayo – está em todos os lados pelas cidades, com anúncios de seus feitos e uma hashtag #Daniel, Nicaragua para avançar, Cristã, Socialista e Solidária.

Não são poucos os motivos que qualificariam essa eleição como polêmica ou controversa. A denúncia principal de uma farsa anunciada por intelectuais nicaraguenses – dentre eles Gioconda Belli e membros da oposição; entre outros atores no xadrez político, é polissêmica, e me deterei principalmente em dois de seus aspectos: na ausência de observadores eleitorais nacionais5 e da Organização dos Estados Americanos (OEA) e na retirada da representação legal do principal partido de oposição, o Partido Liberal Independente (PLI).

Em relação à OEA, a nossa entrada por terra nesse país, às vesperas da eleição, já dá o tom de um país fechado às críticas e observações, dado que eu e os dois demais pesquisadores somos retidos por duas horas e temos nossa vida investigada e acesso condicionado à visita a casa de uma nicareguense conhecida para, finalmente, entrarmos.

Já em relação à segunda controversia, a jovem nicareguense explica: “talvez não não tenha tido fraude, mas irregularidades, tinha um acordo que os partidos menores iam se retirar da eleição, para evidenciar as práticas do Daniel, mas esse se voltou contra eles bem antes e retirou a representação do único que o ameaçava”. Assim, o processo eleitoral seria ilegítimo dado à influência de Daniel Ortega sobre o Judiciário e o Congresso, de destituir 28 legisladores de oposição, em julho desse mesmo ano6, e retirar os partidos com maiores chances de concorrer com ele7. Dentre as figuras que apoiam incondicionalmente o governo Ortega, estariam os garrobos, deputados e ministros que apareceriam somente para votar com o governo. O processo é altamente contestado pelas pessoas com quem conversamos, que reafirmam o slogan de outrora “não há por quem votar8, questionando até mesmo a contagem de votos “você tem fé que vão contar os votos anulados? Eu não tenho nenhuma”, comenta uma nicaraguense, em um colégio eleitoral. A mesma jovem afirma que “os caras da FSLN de hoje são os mesmos dos movimentos dos anos 80, uns tipos muito violentos, preferiram o custo político de colocar títeres em seus partidos, tirando os reais candidatos”.

Era esperado um comparecimento total de 3,4 milhões de nicareguenses às urnas no domingo ensolarado em Manágua, em um país de voto facultativo, para eleger tanto o novo presidente quanto 90 deputados nacionais e 20 do parlamento centroamericano, na eleição vencida por Ortega pela segunda vez consecutiva, com cerca de 70% dos votos, segundo o Consejo Supremo Electoral (CSR).9 As escolas públicas das cidades são os principais pontos de votação, com juntas eleitorais em que os eleitores que realizaram um cadastro podem checar aonde está seu nome para votar e podemos observamos alguns policiais eleitorais e um procurador eleitoral em cada sessão.

Na jovem Nicarágua, cujo significado remonta à tierra de lagos y volcanes, cerca de 70% de sua população possui menos de 35 anos e 60% até 2910, tendo como moeda oficial o córdoba, também conhecido como pesos, em uma economia que desponta frente à promessa da construção de um canal11, mas que no começo do milênio já sofre um relativo baque. Crise essa que também é objeto de disputa societária, com o exemplo da chegada recente dos haitianos ao país, em trânsito pela América Central até os EUA, que de alguma maneira evidenciam práticas de abuso de Direitos Humanos com as populações mais vulneráveis, como as extorsões policiais e o tráfico de pessoas, que se aproveita, principalmente, de migrantes e refugiados12.

Todo esse panorama se desenrola em um país de crescentes dificuldades para a mobilização cidadã, apesar de seu passado revolucionário, com sua iconclastia e cânticos13 aproveitada pela FSLN atual, mas cujas semelhanças com à frente que liderou a Revolução no final da década de 1970 são escassas atualmente. Ainda assim, no dia posterior à esperada vitória de Daniel Ortega, camisas com seu rosto são vendidas nas praças principais de Managua junto às imagens de Che Guevara. É nesse contexto que uma jovem nicaraguense tenta explicar a situação do país “temos direito a nos mobilizarmos, mas não já não nos mobilizamos”, em um ambiente político que joga com a memória do sandinismo de outrora, exemplificado pela facilidade de filiação aos grupos da juventude sandinista e à própria FSLN, “é só pedir uma carteirinha”, a mesma jovem comenta14. Anteriormente o processo tardava bastante, em suas palavras, talvez pela necessidade de confirmação de um ideal comprometido com à justiça social e os rumos do país.

Ademais, a dualidade política se deixa ver pela participação obrigatória dos funcionários públicos nas manifestações pró-governo, “é um governo em que as pessoas não dizem nada, tem medo, ou você está a favor ou contra”. De maneira que toda crítica é potencialmente esvaziada em um binarismo potencialmente perigoso, que pode se transformar tanto em repressão direta, quanto em ameaças de perder o emprego, por exemplo15. Nesse panorama, alguns movimentos começam a ganhar importância, como o Movimiento por Nicaragua (MSP)16, uma das organizações civis que busca historicamente pautar a democracia e os direitos civis nesse país, liderando algumas manifestações anteriores à eleição, levantando a suspeita por parte da FSLN atual, como do resto da oposição, de que seriam agentes da CIA ou financiados por grupos estrangeiros para varrer o orteguismo desse país. Confirmada a quarta vitória de Daniel Ortega, de 71 anos, para mais quatro anos no poder, é preciso analisar com cautela as dinâmicas desse país centro-americano para o futuro.

1Doutora em Sociologia pelo IESP-UERJ e pesquisadora do NETSAL (Núcleo de Teoria Social e América Latina).

2A avenida 19 de julio faz referência ao aniversário da Revolução Sandinista, uma data importante para o país, anteriormente celebrada com manisfestações diurnas, que se tornaram noturnas nos últimos anos, segundo as pessoas com quem conversei, retrato de um certo temor às críticas e da oposição, pelo governo.

4O movimento seria escasso por conta do alto número de abstenções, cujos dados até o momento não são conhecidos, mas que variam entre 35% (dados do Consejo Supremo Electoral (CSE) e alarmantes 70% (dados da oposição, agrupada na Frente Amplio por la Democracia (FAD).

5Um exemplo dos atores nacionais fiscalizando o processo eleitoral é o Panorama Electoral, organizações conformando a Observação Eleitoral Nacional de 2016, através de 152 observadores, monitorando de maneira sistemática a etapa pré-eleitoral por 3 meses, além de participarem ativamente na observação do dia 6 de novembro, com 650 observadores nacionais.

10O bônus demográfico experimentado pelo país terá fim em 2035 e é tido pelos economistas como uma oportunidade de crescimento para o país, dado o alto número de pessoas em idade produtiva. Fonte: http://www.laprensa.com.ni/2013/03/04/opinion/136800-bono-demografico-la-oportunidad-de-nicaragua

13Um exemplo de canção da FSLN é: https://www.youtube.com/watch?v=5svC1rUDjSI

14Uma anedota a respeito da carteirinha da FSLN é contada por Gabriela Selser, em seu livro “Banderas y harapos – Relatos de la Revolución en Nicaragua”, sobre como ela e outras alfabetizadoras trabalhavam com educação popular junto à guerrilha nas montanhas perto da capital, no início da década de 80 e esperavam ansiosamente receber a carteirinha. Por terem violado algumas regras do movimento, essa entrega, que simbolizava a entrada oficial na FSLN, foi adiada, deixando-as bastante frustradas.

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