ANÁLISE – Guatemala: crise e espaços para a transformação. Outras dimensões para pensar a conjuntura.

Por Laura Sala*

Tradução por: Mariana Yante

 

Desde abril, quando vieram à tona as primeiras provas da investigação da Comisión Internacional contra la Impunidad em Guatemala (CICIG) e do Ministério Público (MP), conhecida como a “La Línea”, a Guatemala vive uma conjuntura inédita. O Presidente, o general aposentado Otto Fernando Pérez Molina, renunciou a seu cargo logo após o Congresso haver retirado sua imunidade, e que o juiz Miguel Ángel Gálvez ordenasse sua prisão em razão dos crimes de associação ilícita, corrupção passiva e de caso especial de fraude aduaneira. Antes do presidente, uma grande parte de seu gabinete acusado de corrupção havia renunciado, entre os quais estava a vice-presidenta Roxana Baldetti (agora presa).

Os atos de corrupção do governo do Partido Patriota têm desencadeado protestos cidadãos e populares massivos em todo o país. O movimento que se iniciou na Cidade capital, reforçado pelas classes médias urbanas a partir do pedido de renúncia da vice-presidenta, do fim da corrupção e da devolução do que foi roubado, estendeu-se de plano ao resto dos departamentos, e ampliou sua base social e suas demandas.

Em meio ao conflito, foram levadas adiante as eleições gerais programas (6/9/2015), que, com surpresa para muitos, levarão ao segundo turno o comediante Jimmy Morales (FCN-Nación) e à líder do partido Unidad Nacional de la Esperanza, Sandra Torres. Ficaram no meio do caminho o Partido Patriota e o Partido Líder do então favorito nas pesquisas Manuel Baldizón, o qual se desvinculou do partido logo após sua derrota.

A demissão da cúpula presidencial e o jogo de forças encadeado para sucedê-la deixaram na liderança do Executivo guatemalteco Alejandro Maldonado Aguirre, um ator histórico da política da Guatemala, e o recentemente eleito pelo Congresso para ocupar a vice-presidência, Juan Alfonso Fuentes Soria. Ambos deverão comandar o barco até janeiro de 2016, momento em que deverão assumir as autoridades eleitas.

Duas explicações opostas têm liderado a interpretação da conjuntura. A primeira a concebe como uma explosão de indignação cidadã pela corrupção. A segunda entende os sucessos como uma estratégia geopolítica dos Estados Unidos. Para esta última, têm convergido atores dos mais distintos, desde o mesmo Pérez Molina até quadros intelectuais da esquerda política guatemalteca.

 

Sobre o Estado pós-conflito e as alianças de poder que o forjaram.

A transição à democracia eleitoral (1986) e à “paz” (1996) modificou a institucionalidade estatal da Guatemala, mas não transformou as relações de poder que seguiram assentadas sobre a exclusão de amplos setores sociais.

No calor do neoliberalismo, emergiram novos atores, outros se modernizaram e estabeleceram uma nova aliança de exclusão, que inclui, em permanente tensão e reacomodação, as elites transnacionalizadas, as empresas transnacionais, o CACIF, alguns setores econômicos emergentes, os interesses norte-americanos e as elites políticas[1]. O exército seguiu sendo uma parte importante nesta coalisão, como demonstra a presença de um de seus homens fortes na Presidência da República a partir de 2012.

Esta aliança que controlou e deu forma às instituições do Estados desde a transição seguiu ao pé da letra as diretrizes do neoliberalismo. Reestruturou o aparato estatal, desmantelou suas capacidades interventivas, privatizou os poucos, mas importantes ativos do Estado. Levou adiante a abertura da economia e uma nova inserção na globalização, a partir das exportações não tradicionais, processo no qual teve e tem especial relevância a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). Tudo isso implicou um processo de desindustrialização e reprimarização econômica e recolonização, que assentou as bases do atual modelo extrativo exportador que foi enfrentado com a luta das comunidades pela terra e por recursos naturais.

A indústria do crime organizado continuou a desenvolver-se dentro e fora do Estado e encontrou espaços apropriados para consolidar-se. O caso de “La Línea”, cuja conexão com a inteligência militar remonta aos anos setenta, é um claro exemplo[2]. É importante recordar que o crime organizado não implica somente as maras ou os narcotraficantes mais emblemáticos. Constitui uma complexa rede que envolve partidos políticos, distintos níveis de governo, forças de segurança, empresários e organismos públicos e privados locais e internacionais.

As características da política institucional, hoje em debate, fizeram com que a democracia se reduza a processos eleitorais somente aptos para partidos com grandes financistas. Os acordos de paz que pretendiam trabalhar sobre as causas e as ferozes consequências do “conflito armado” caíram no esquecimento. As políticas sociais têm sido as grandes ausentes deste Estado, com a apenas curta e incipiente exceção daquelas levadas adiante por Sandra Torres durante o governo de Álvaro Colom (2008-2012). Dessa maneira, fortaleceram-se as dinâmicas de exclusão social e econômica da sociedade guatemalteca. O resultado tem sido devastador. Mais da metade da população sobrevive abaixo da linha de pobreza. O analfabetismo abrange quase 30% dos guatemaltecos. A violência social e a criminalidade alcançam níveis alarmantes, cujo máximo exponente foi registrado no ano de 2009, com uma taxa de homicídios de 46,36 para cada 100 mil habitantes.

 

A conjuntura: espaços para a transformação.

Esta breve síntese levanta uma nova interrogação acerca da conjuntura – os protestos massivos constituem somente uma expressão de indignação pela corrupção ou pura manipulação norte-americana? Mias além da influência destas duas dimensões, a abrangência e a heterogeneidade dos protestos estão refletindo uma ausência de legitimidade profunda do Estado isto é, uma ausência de legitimidade das relações sociais que têm dado forma ao Estado desde a transição. Isso não significa que uma transformação radical da sociedade está emergindo, mas sim que a conjuntura abriu espaços para a transformação que demandam, caso se pretenda mudar as relações de poder, um projeto político criativo, capaz de direcionar a crise a esses lares.

A participação de setores do ACIF nas mobilizações populares e o apoio dos Estados Unidos à CICIG, entre outros tantos movimentos seus, podem ser interpretados como processos de reacomodação e reconfiguração das alianças estabelecidas nestes anos, a fim de permitir, novamente e frente à conjuntura crítica atual, certa mudança na institucionalidade estatal que permita a reprodução do status quo, de acordo com as novas exigências do mercado. A ascensão feroz e a vitória eleitoral do humorista Jimmy Morales da mão da Frente de Convergencia Nacional (FCN-Nación), partido fundado em 2008 pela Associación de Veteranos Militares (AVEMILGUA), devem nos alertar, igualmente, sobre a recomposição militar dentro do jogo político e sobre o rumo que pode tomar o processo aberto em abril. Recordemos que a AVEMILGUA busca a dignificação dos veteranos do conflito armado e defende ativamente os interesses militares. Tem sua frente de incidência na Fundación contra el Terrorismo que cumpriu um papel central em defesa de Ríos Montt durante o julgamento por genocídio, e que consiste no principal órgão de divulgação em chave contra-insurgente contra ativistas de direitos humanos, comunitários e líderes de organizações sociais. O Partido FCN é, desde 2008, sua nova fonte de ação.

Apesar disso, a conjuntura (que não se reduz ao eleitoral) ainda está aberta. Pode ser que esteja sendo otimista, mas a reação popular, massiva, heterogênea e constante, abriu fissuras significativas. Nesse contexto, o incipiente pero promissor debate entre atores e forças de esquerda[3]  pode constituir-se a médio prazo em uma força capaz de direcionar o processo a uma transformação real das relações sociais que construíram o Estado na Guatemala.

*Laura Sala é Integrante del Grupo de Estudios sobre Centroamérica (GECA) – Universidad de Buenos Aires.

 

**NOTAS:

[1] Para aprofundar o tema, ver Ricardo Sáenz de Tejada (2014), Mapeo del arreglo político vigente em Guatemala. Disponível em: <http://www.congcoop.org.gt/images/MAPEO_DEL_ARREGLO_POLITICO_30102014.pdf>

[2] Veja-se :<https://cmiguate.org/el-caso-sat-el-legado-de-la-inteligencia-militar&gt;.//////

[3] Vejam-se os escritos de Manolo Vela em Elperiodico: Vamos a construir algo nuevo” (ElPeriodico. 9/11/14); “Somos una minoría aislada, derrotada y sin instrumentos” (ElPeriodico 23/11/14), “Mi voto, por Sandra” (ElPeriodico 16/08/15:http://elperiodico.com.gt/2015/08/16/domingo/mi-voto-por-sandra); No mesmo sentido, a seção “Debate sobre la Izquierda en Plaza Pública”, iniciado por Álvaro Velásquez, Alejandro Flores, Virgilio Álvarez Aragón  y Christian Espinoza. Disponível em: http://www.plazapublica.com.gt/content/manual-para-poner-las-izquierdas-de-acuerdo; http://www.plazapublica.com.gt/content/una-politica-del-deseo; http://www.plazapublica.com.gt/content/nos-urge-una-izquierda-democratica; http://www.plazapublica.com.gt/content/es-posible-la-nueva-izquierda-guatemalteca.

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