Tradução: Mariana Yante
*Este texto será publicado em duas partes, devido a sua extensão, e tem sua versão original publicada em: http://acoguate.org/2015/09/07/criminalizacion-de-defensores-en-el-norte-de-huehuetenango/.
** A Coordinación de Acompañamento Internacional em Guatemala (ACOUGATE) é uma rede que congrega 11 comitês autônomos, pertencentes a 10 países da Europa e América do Norte. Um de seus objetivos centrais é o monitoramento do trabalho de militantes (organizações ou indivíduos) dos Direitos Humanos na Guatemala, a partir de três eixos principais: a luta pela justiça e o enfrentamento à impunidade, a defesa do território e dos recursos naturais e a luta pelos direitos dos(as) trabalhadores(as). A presente publicação foi compartilhada no sítio eletrônico da rede (http://acouguate.org), e é de autoria de um(a) colaborador(a) que prefere não se identificar por questões de segurança. O ISTMO dá suporte integral à iniciativa e é grato por poder divulgar as informações produzidas também na Língua Portuguesa.
Durante 2015, oito defensores de direitos humanos e dos recursos naturais do norte de Huehuetenango, acompanhados pela ACOGUATE, encontram-se privados de liberdade, em prisão preventiva. No julgamento contra Saúl Méndez e Rogelio Velázquez, de Barrillas, iniciou-se a reiteração do debate oral e público a partir do dia primeiro de setembro, agora em Quetzaltenango. Os processos judiciais instaurados em face de Francisco Juan Pedro (Chico Palas), Adalberto Villatoro (Don Tello), Arturo Pablo Juan e Ermitaño López (Don Taño), de Barillas, e Domingo Baltazar e Rigoberto Juárez, de Santa Eulalia, encontram-se na fase intermediária, e espera-se que o debate oral e público se inicie nos próximos meses. Em nenhum dos casos os juízes admitiram outorgar liberdade condicional aos indiciados.
Ainda que mude constantemente e requeira frequentes atualizações, a situação dos presos reflete o fortalecimento da criminalização dos defensores dos direitos humanos, que se observou no transcurso do ano na região norte de Huehuetenango. Este fenômeno se evidencia em uma estratégia que fragiliza uma pluralidade de direitos humanos e dos povos em contextos específicos.
Por que e quando falamos de criminalização?
De acordo com a Unidad de Protección a Defensoras y Defensores de Derechos Humanos, Guatemala (UDEFEGUA), se poderia dizer que, há pouco mais de dez anos, a criminalização tem sido identificada (e, de fato, mais sofisticada) como uma das estratégias de fragilização e repressão dos direitos humanos na Guatemala, e de ataque a defensores(as) em diversas regiões do país. Em seu relatório de 2010 1, a UDEFEGUA menciona que “esta sistematização (sobre criminalização) se inicia em 2004, porque este é o ano em que este novo padrão de ataques inicia com a aplicação sistemática do delito de usurpação agravada, modificado em 1997, como mecanismo para o manejo dos conflitos provocados pela reconcentração de terras e pela utilização da denúncia penal por parte do Estado ante a manifestação”2. Mais adiante, assinala que, na Guatemala, “de 2004 até o momento (junho de 2010), foram abertos 592 processos penais contra defensores(as)” 3. O ocorrido no norte de Huehuetenango, principalmente desde 2012 (mas que se iniciou, de fato, desde 2008), sugere que a criminalização não é nova, mas tem persistido até agora como estratégia de repressão contra pessoas defensoras e movimentos sociais de direitos humanos.
Não podemos esquecer que a criminalização tem sido uma tática que vem se generalizando nos últimos anos na América Latina, para calar (e fazer cair) as diversas vozes de protesto social frente aos modelos sócio-econômicos e políticos impostos pelos governos4. Esse processo tende a agravar-se frente à imposição – sem consentimento prévio e sem participação da população local – de projetos transnacionais, extrativos e energéticos. Cabe mencionar que muitas das entidades (públicas ou privadas) encarregadas de desenvolver estes projetos se tornam ativas protagonistas da repressão aos grupos sociais e moradores(as) que se opõem, resistem e denunciam seus efeitos negativos, uma vez que tais iniciativas geralmente implicam violações ao direito à autodeterminação dos povos originários, e/ou ao direito a terra e ao território de comunidades indígenas e campesinas. Igualmente constituem uma ameaça ao meio ambiente (à Mãe Terra) e ao acesso à agua por todos(as). A isso se soma que a criminalização como tal atenta contra os direitos civis e políticos dos(as) defensores(as), por exemplo da liberdade de expressão. Os grupos e pessoas afetadas são obrigados a recorrer a medidas cada vez radicais de protesto social, ainda que de forma legítima, para fazer valer suas reivindicações em face da repressão e da falta de vontade de entabular um diálogo realmente respeitoso por parte das autoridades e das empresas, que ignoram a vontade dos povos, desconsideram sua identidade e destroem seus meios de subsistência (como o milho, os bosques, o feijão, os rios etc.) e seu potencial desenvolvimento econômico por meio do comércio (por exemplo, do café e do cardamomo, no caso de Huehuetenango). Os povos originários, ademais, preservam e reivindicam usos, “modos”, costumes e formas de organização social, política e jurídica, ancestrais, mas vigentes, e com sua própria visão de bem-estar comunitário (o bem viver, por exemplo, frente ao discurso desenvolvimentista), e de dignidade humana e coletiva, que resultam incompatíveis com ditos projetos, especialmente na região dos Cuchumatanes.
De acordo com os números da UDEFEGUA5, os defensores da terra e do território, desde os anos 2000, são o grupo mais atacado por casos de criminalização no país; e, em segundo lugar, os defensores dos direitos dos povos indígenas. Somados, estes dois setores representam 70% dos casos de criminalização entre 2004 e 2009.
Da mesma forma, organizações internacionais de direitos humanos reconhecem que “o objetivo da criminalização é criar medo, destroçar a reputação, debilitar a resistência, forçar oponentes a dedicar seu tempo e recursos a defender-se e, finalmente, justifcar o uso da força contra os oponentes. Afinal de contas, Estados e empresas querem debilitar e neutralizar a resistência para permitir a realização de projetos extrativos de grande escala”6. Por isso se reconhece a criminalização como uma das modalidades mais severas de ataque a defensores(as) de direitos humanos.
Em razão disso, refere-se ao termo criminalização contra defensores(as) em um sentido amplo, contemplando aqueles casos em que se aplica ou se ameaça aplicar indevidamente a lei, quase sempre em matéria penal, instrumentalizando por parte do Estado a aplicação de diversas disposições legais, em direito penal particularmente, e desvirtuando as instituições encarregadas de efetivar a justiça ou que participam de sua concretização 7.
Isto inclui denunciar falsamente a alguém ou sem certeza das acusações; proferir ordens de prisão e iniciar investigações criminais de forma arbitrária ou premeditada; proceder a detenções arbitrárias ou ilegais; atribuir a prática de fatos a indivíduos sem provas ou fabricando-as; apresentar acusações desproporcionais aos fatos investigados, especificamente contra algumas pessoas e/ou comunidades “fichadas” politicamente, com o propósito de proteger interesses particulares ou ideológicos, mas alheios à sã aplicação de uma justiça célere e imparcial. Em um sentido mais específico, o fato de iniciar processos penais é também reconhecido como a judicialização do conflito social. Esta situação adquire sua forma mais severa quando chegam a ser impostas sentenças condenatórias contra defensores(as) em virtude de fatos que não cometeram, nem sobre os quais tiveram responsabilidade penal alguma que pudesse lhes ser atribuída validamente. No entanto, casualmente, são muito poucos os litígios em que o Ministério Público (MP) consegue obter uma sentença condenatória8.
Nos casos de criminalização, a discricionariedade Estatal e da Justiça na persecução penal se dirigem, então, não contra pessoas que tivessem cometido um delito, mas contra pessoas ou coletividades que, por motivo de suas atividades e posicionamentos econômicos, sociais, políticos, culturais etc., façam frente às decisões e políticas públicas dos governos mesmos. Por isso, quando são privados de sua liberdades, são qualificados como presos políticos 9.
Casos observados em 2015
A observação e o acompanhamento das audiências públicas, e graças aos testemunhos das pessoas afetadas e dos advogados de DEFESA, dão conta do fato de que os casos abertos durante o ano de 2015 em face de defensores de direitos humanos de Barillas e Santa Eulalia constituem em seu conjunto ações que se enquadram no fenômeno da criminalização. Por isso, resulta indispensável fazer uma breve descrição de cada um dos processos penais abertos atualmente.
Nos casos observados pela ACOUGUATE desde 2013, em Huehuetenango, encontram-se na origem dos fatos pelos quais estes defensores desde 2008 estão sendo criminalizados os projetos hidroelétricos Cambalam I e Cambalam II, em Santa Cruz Barrillas – da empresa Hidro Santa Cruz S.A., filial da espanhola Hidralia Energía –, e, em Santa Eulalia, da empresa 5M S.A., a qual está localizada na Finca San Luis, e é filial da mesma Hidralia Energía. Estes projetos estão atualmente suspensos, em virtude dos fatos ocorridos na região10, e pela resistência das comunidades que se inserem no conjunto dos municípios em resistência do norte do epartamento: Santa Cruz Barillas, San Mateo Ixtatan, Santa Eulalia, San Pedro Soloma, San Juan Ixcoy, San Sebastian, San Rafael, entre outros. Com a última consulta em Malacatancito em 02 de agosto passado, são 29 dos 32 municípios do departamento que, através de consultas comunitárias de boa-fé, já manifestaram seu rechaço a projetos mineradores, hidrelétricos e petrolíferos, e se pronunciaram pela defesa dos recursos naturais em seus territórios. Não obstante, sabe-se de mais de 40 licenças de exploração e extração dos recursos naturais, vigentes ou em trâmite.
CASOS OBSERVADOS | |
Saúl Méndez e Rogelio Velázquez, o caso quiçá mais emblemático, presos (pela segunda vez) desde 27 de agosto de 2013. Eles são acusados de haver participado de um linchamento ocorrido em 19 de agosto de 2010 em Barillas. Recolhidos à prisão de Huehuetenango, sua causa se encontra atualmente em trâmite no Tribunal de Feminicídio de Quetzaltenango e esperam por nova sentença no próximo 13 de outubro[1].
Ver: Comunicado segundo juicio presos políticos Saúl y Rogelio |
Ermitaño López, capturado em 02 de junho passado, é o último dos defensores detidos até agora. É acusado de atentado, coação, ameaça, instigação ao crime, obstacularização à aplicação da justiça e plágio ou sequestro, ante o Juizado de Santa Eulalia, que agora está detido na Cidade de Huehuetenango, por força de prisão preventiva. É acusado, juntamente com Francisco Juan Pedro (Chico Palas), Adalberto Villatoro (Don Tello), Arturo Pablo Juan e nove outros defensores, de haver participado da retenção do pessoal do CAJ durante uma audiência no Juizado de Santa Eulalia, no marco do caso acima mencionado. |
Rigoberto Juárez e Domingo Baltazar, detidos no presídio da zona 18 da capital, foram capturados no último 24 de março de 2015, e enfrentam atualmente acusações por detenções ilegais, coação e instigação ao crime. No início, o MP os acusava de plágio ou sequestro, ameaça, atentado e obstacularização à aplicação da justiça, mas a titular do Juzgado de Mayor Risgo A descaracterizou estes últimos*. São acusados de haver participado dos acontecimentos ocorridos entre 19 e 20 de janeiro de 2015, nos quais supostamente um grupo de pessoas reteve o pessoal do Centro de Administración de Justicia– CAJ de Santa Eulalia. Enfrentam outro processo em face do Juizado de Santa Eulalia pela sua suposta participação, junto a um grupo de moradores, da retenção de trabalhadores da empresa 5M S.A., nos dias 2 e 9 de dezembro de 2013.
*Não obstante, o MP apresentou uma apelação contra esta decisão, a fim de restabelecer a acusação pelo delito de plágio ou sequestro. Até o mês de agosto, esta apelação ainda não tinha sido apreciada de forma definitiva. |
Francisco Juan Pedro (Chico Palas), Adalberto Villatoro (Don Tello), Arturo Pablo Juan (Profe Arturo) foram detidos em 26 de fevereiro de 2015, em um primeiro momento acusados dos delitos de ameaça, instigação ao crime, reunião e manifestação ilícitas – acusações às quais se agregaram depois a de plágio ou sequestro. Detidos na prisão da Zona 18 da capital, sua ação penal vem sendo processada ante o Tribunal de Mayor Riesgo A, em virtude de fatos ocorridos em 22 de abril de 2013, no lugar conhecido como Poza Verde, em Barillas. São acusados de haver formado parte de um grupo de pessoas que, nesse dia, supostamente retiveram durante algumas horas trabalhadores da empresa Hidro Santa Cruz S.A., para que se comprometessem a mão mais trabalhar para esta. A essas acusações se soma outra (sobre a qual voltaremos a diante), que se processa no âmbito do Juizado de Santa Eulalia, por fatos ocorridos em 23 de janeiro de 2014. |
Nota: A presente contribuição foi escrita no início de setembro de 2015. A sentença definitiva em referência, proferida em 28 de outubro, declarou-os inocentes. Nas acusações originais, que também atribuíam aos acusados a prática de crime de feminicídio e assassinato, o Ministério Público havia se manifestado pela atribuição de uma pena de cem anos a cada um deles. Em suas razões, o Tribunal destacou, entre outras coisas, que o fato de a denúncia apenas haver sido impetrada três anos depois do episódio, aliado à mudança das circunstâncias narradas pelo MP no curso do processo, dificultava a apuração da verdade e a consistência da tese do órgão acusador, além de violar obrigação imputada ao Estado guatemalteco de evitar que acontecimentos semelhantes ocorram, na forma do que restou decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Velíz Franco contra o Estado da Guatemala, proferida em 19 de maio de 2014 (N. da T.).
Em todos os casos, referem-se a eles como os líderes que “dirigiam” ações protagonizadas por grupos de moradores. Igualmente, à exceção do caso de Saúl Méndez e Rogelio Velázquez, observa-se que, embora no princípio (2013 e 2014) as acusações tenham provindo de trabalhadores das empresas hidroelétricas, a partir de 2014 e 2015, são as próprias autoridades locais, em particular as de Santa Eulalia, que se apresentam como vítimas.
Modalidades e facetas da criminalização, de acordo com os casos observados
Uma das táticas utilizadas para criminalizar é provocar atrasos no curso dos processos penais. Assim, nos casos acima mencionados, não se respeitou o prazo de 24 horas após a prisão, estabelecido pela lei para o recolhimento da primeira declaração. Rigoberto Juárez e Domingo Baltazar não prestaram sua declaração ante o juiz, senão após dois meses depois de haverem sido presos. Em outros casos, o MP solicitou aos juízes as prorrogações mais amplas para realizar suas investigações, e ao final de ditos prazos não apresentou maiores resultados, atrasando as etapas seguintes.
Outro recurso é acusar as pessoas de delitos tão sérios que não permitem que sejam postos em liberdade condicional, e cujas penas em abstrato são as mais altas existentes no Código Penal. É assim que, se em outros casos se viu que os defensores são injustificadamente acusados de “terrorismo”12, nas denúncias formalizadas contra Ermitaño López, Rigoberto Juárez e Domingo Baltazar, assim como contra Francisco Juan Pedro, Adalberto Villatoro e Arturo Pablo Juan – todos são acusados do delito de “plágio ou sequestro”, o qual prevê uma pena de até quarenta anos de prisão. Acerca da aplicação deste delito nesses casos, faremos algumas considerações adiante.
Em sua coluna publicada pelo Centro de Medios Independientes – CMI –, Andrés Cabanas escreve: “se ameaça, reprime e encarecera, com argumentos (formalmente) inapeláveis: a violação à lei. Mas o técnico-jurídico como justificador das prisões está deslegitimado pelo histórico dos ilícitos, pelas arbitrariedades e pelas irregularidades cometidas pelos operadores da justiça”13. Entender a criminalização reside na maneira pela qual os casos são levados às autoridades. “A criminalização se aproveita de um discurso simplista e vago; desta maneira é muito fácil acusar a qualquer um de qualquer coisa”, expressa um dos advogados de defesa, à saída de uma audiência. No entanto, para refutar as teses argumentativas contra seus clientes, os advogados evidenciam a falta de técnica jurídica por parte do MP, em particular a ausência de elementos que permitiriam estabelecer a “individualização da conduta”. Em outras palavras, os aspectos que dizem cabalmente ao juiz que uma pessoa plenamente identificada cometeu uma ação delitiva de acordo com as descrições da conduta tipificadas no Código Penal ou em outra lei. Sem estes elementos, em lugar de uma acusação legal, existem alegações em abstrato, suposições e deduções sobre o ocorrido em um determinado lugar e momento, bem como sobre os autores destes fatos. Isto se mostra essencial, na medida em que tais acusações se baseiam em momentos de tensão entre a população, que efetivamente ocorreram devido à conflitividade social provocada na região; contudo, de acordo com os advogados de defesa, “o MP não tem podido em nenhum caso vincular pessoal ou diretamente os indiciados ao fato de haverem provocado, participado ou instigado ditos acontecimentos”. Além disso, alguns dos fatos ocorridos não constituem delitos em si, mas se objetiva, por meio deles, criminalizar a mobilização social.
Em relação ao mencionado no parágrafo anterior, os advogados de defesa argumentam que os fatos nos quais se baseiam as acusações se referem a acontecimentos chamados “delitos de multidão”, ou seja, cometidos por uma quantidade indeterminada de pessoas. Isso leva o MP a deduzir que os indiciados, por serem líderes comunitários, necessariamente “dirigiram” os fatos denunciados, “sem lhes atribuir uma conduta específica e os fatos de tempo, modo e lugar em que cometeram supostamente esses fatos”.
Pior ainda, Domingo Baltazar, Rogelio Velázquez e Francisco Juan Pedro (Chico Palas), em seus casos respectivos, negam categoricamente haverem estado sequer no lugar e no momento dos fatos. Apresentam provas de que se encontravam em outros lugares. Inclusive, em alguns casos, as próprias vítimas não os mencionam diretamente nas suas declarações.
No que tange a Ermitaño López, Rigoberto Juárez e Domingo Baltazar, assim como a Francisco Juan Pedro, Adalberto Villatoro e Arturo Pablo Juan, a defesa nota que, de maneira surpreendente, “as atas testemunhais dos denunciantes e de outras testemunhas que o MP apresenta em suas acusações são uma cópia exata umas das outras, parágrafo por parágrafo, como se cada pessoa tivesse pronunciado separadamente exatamente as mesmas palavras para narrar o que viu”. Alguns advogados expressaram que este “copiar-colar” demonstra “uma total falta de objetividade e profissionalismo, e é uma séria arbitrariedade” por parte dos fiscais do MP que participam destes processos.
Segundo a defesa e os próprios acusados, os vínculos, inclusive abertamente reconhecidos, entre fiscais do MP e os advogados e o pessoal das empresas hidrelétricas, para tecer as acusações contra os que se opõem a seus projetos, põem em xeque a atuação do órgão. Mais preocupante ainda resulta a atuação da Fiscália de Derechos Humanos do MP, cuja tarefa consistiria em princípio em velar pelo respeito ao devido processo legal, já que em todos os casos que se ventilam tanto em Huehuetenango, como na Cidade da Guatemala (exceto no de Saúl e Rogelio), esta entidade é a que acusa os defensores. Na oitiva da primeira declaração de Rigoberto Juárez e Domingo Baltazar, o advogado Benito Morales assinalou que um fiscal de Direitos Humanos do MP havia confessado pessoalmente a ele que “tinha ordens de cima para manter na prisão todos os de Huehuetenango”. Em alguns desses processos, o MP apresentou como prova de sua investigação contra os líderes sociais da região um “Relatório da estrutura criminal em Huehuetenango. Conflito Social”, realizado por Víctor Hugo Villatoro, um advogado das empresas hidrelétricas.
Os defensores criminalizados, no momento de sua primeira declaração durante estes processos, e os advogados, durante sua defesa, identificaram um “rol das instituições do Estado como investigadores e promotores diretos da conflituosidade social, assim como de outros atos de violência contra os defensores, como ameaças, intimidações e chegando ao extremo de agressões físicas e inclusive assassinato”. Este último, em referência concreta aos fatos ocorridos nos últimos 19 e 20 de janeiro de 2015 em Santa Eulalia, onde, de acordo com testemunhas e vítimas, ocorreu um enfrentamento provocado pelo prefeito municipal e por pessoas relacionadas a ele, que acabou em uma pessoa assassinada e várias mais afetadas física e psicologicamente, além do fechamento da rádio comunitária de Santa Eulalia.
As pessoas às quais nos referimos como defensores têm um papel de mediadoras, pacificadoras, negociadoras, porta-vozes e de liderança, com uma autoridade moral reconhecida tanto pelas comunidades, como por outras organizações de direitos humanos da Guatemala e de outros países. E mais – em anos anteriores, haviam sido interlocutores de suas comunidades em mesas de diálogo das quais participaram o ex-presidente Otto Pérez Molina, o Ministério da Defesa e a COPREDEH. Em relação a isso, a Convergencia por los Derechos Humanos mencionou que “as empresas mantêm a pressão para que se condene particularmente aos líderes não violentos e aos que têm mostrado a face ao governo para pedir um diálogo respeitoso e o direito à consulta livre, prévia e informada14”.
A par dessas denúncias contra si, os defensores de Huehuetenango vêm assinalando em diversas ocasiões que os fatos dos quais são acusados foram provocados e instigados por pessoas vinculadas às empresas hidrelétricas Hidro Santa Cruz S.A., em Barillas, e pela Empresa 5M S.A., em Santa Eulalia, assim como pelos próprios funcionários municipais, em seu caso. Como aponta um dos advogados de defesa, “estes fatos e acusações não têm sido investigados pelo MP, demonstrando um atuar que não é nem imparcial, nem objetivo”15. Membros de organizações de direitos humanos têm assinalado em diversas ocasiões que são estas empresas as que provocam a violência e buscam beneficiar-se dela para controlar o poder econômico e inclusive político no nível local, em cumplicidade com as autoridades nacionais, as quais “preferem defender e promover estes projetos a proteger e velar pela população que governam16.”
Finalmente, o fator multicultural não pode ser deixado de lado ao tratar-se das comunidades maya q’anjob’al, chuj, poptí, akateco, mam e mestiças, entre outros povos presentes em Huehuetenango. Como explicava Rigoberto Juárez em sua primeira declaração, “o fato de exigir pacificamente e coletivamente que as autoridades (estatais) solucionem nesse momento e o mais rapidamente possível uma crise da conflituosidade social à qual está exposta a própria gente corresponde a evitar consequências mais graves e trágicas e a que ninguém saia machucado. Isto está também em conformidade com nossos modos e costumes tradicionais dos povos na solução de conflitos”. Por isso, como defende seu advogado Benito Morales, em respeito às normas internacionais, como a Convenção 169 da OIT, os fatos ocorridos no 24 de março de 2014, 19 e 20 de janeiro de 2015, não podem ser validamente interpretados como delitos tais como retenções ilegais, coação, obstrução à ação penal ou instigação ao crime, tal como se refere o MP em suas acusações.
[NOTAS]
1 2ª parte, “Criminalización 2004-2009”, em “Criminalización, una forma de paralizar y debilitar la respuesta social”, Udefegua, 2010. p. 9 em diante. Disponível em: http://www.ghrc-usa.org/Programs/HumanRightsDefenders/informe_udefegua_semestral.pdf
2 Idem. p. 3.
3 Idem.
4 Entre muitos outros estudos e relatórios sobre o tema, mas para nomear outros espaços acadêmicos que não os “normalmente” citados, pode-se ler o Informe del Centro de Estudios en Libertad de Expresión y Acceso a la Información (CELE) da Facultad de Derecho de la Universidad de Palermo, financiado pela Fundación Open Society Institute: Eduardo Bertoni (coord.)“¿Es legítima la criminalización de la protesta social?”. Ed. Universidad de Palermo, 2010. Disponível em: http://www.palermo.edu/cele/pdf/LIBRO_BERTONI_COMPLETO.pdf
5 Op. cit., Udefegua 2010. p. 15.
6 “La criminalización de la protesta social en torno a la industria extractiva en América Latina”, CIDSE, 2011. Disponível em: http://www.cidse.org/publications/business-and-human-rights/download/35_643387d27335b86daa4602b5ae709725.html.
7 Por exemplo, o Ministério Público e as procuradorias especializadas, o Organismo Judicial e a Corte de Constitucionalidad, e finalmente o Sistema Penitenciario e a Policía Nacional Civil.
8 Udefegua (op. cit., 2010) assinala apenas um caso de sentença contra um defensor entre 2004 e 2009, entre 592 ações penais abertas. Igualmente, todas as pessoas criminalizadas desde 2009 e, principalmente, em 2012, no norte de Huehuetenango, foram liberadas. Todos os processos iniciados em 2014 e 2015 nesta mesma região que seguem abertos em sua maioria estavam na fase intermediária em setembro de 2015.
9 Em um sentido mais resumido, alguns doutrinadores latinoamericanos o chamam de “judicialização da política”, nos casos em que há “governos que criminalizam aquilo que não podem resolver de outra maneira”. Ver “¿Es legítima la criminalización de la protesta social?”, (CELE, 2010. op. cit, p. 18).
10 Em particular, recordam-se os lamentáveis assassinatos de Andrés Francisco Miguel de Barillas, ocorrido en maio de 2012, e de Daniel “Maya” Pedro Mateo de Santa Eulalia, ocorrido en abril de 2013.
11 Não obstante, o MP apresentou uma apelação contra esta deliberação, para restituir o delito de plágio ou sequestro à acusação. Até o mês de agosto, a referida apelação ainda não havia sido resolvida de forma definitiva.
12 Tal como foram acusados os defensores do território de Huehuetenango (e outros no país), em 2012.
13 Andrés Cabanas, Memorial de Guatemala, “Un pacto por la vida”, por CMI-G – 26 mar, 2015. Disponível em: https://cmiguate.org/un-pacto-por-la-vida/
14 Comunicado da Prensa de la Convergencia por los Derechos Humanos, datado de 30 de março de 2014, “El Estado de Guatemala cierra espacios a la sociedad civil y a los pueblos indígenas”.
15 Não obstante, no princípio de setembro se soube que, em virtude dos fatos ocorridos em 19 e 20 de janeiro de 2015, a Suprema Corte de Justicia havia acolhido as queixas preliminares contra o prefeito de Santa Eulalia. Tendo em vista que este último aspira a ser reeleito nas eleições a se realizarem em 6 de setembro de 2015, os expedientes estão nas mãos do Tribunal Supremo Electoral desde 03 de setembro. As informações atualizadas dão conta de que o candidato (e atual prefeito) Diego Marcos Pedro não venceu o pleito eleitoral, vencido por Daniel Juan Francisco, que não estava previamente inscrito como candidato e que, segundo rumores da população local, é ligado aos serviços de contrabando transfronteiriço de pessoas (coiote).
16 Comentário de uma pessoa de Barillas durante uma visita da ACOGUATE na região.