ANÁLISE: Cárcere e poesia

Por Miroslava Rosales*

Tradução por Eugênio Xavier

Revisão por Mariana Yante

 

Não sei se as Leis são justas ou se as Leis são falhas…
Isso não cabe a mim.
Nós só sabemos, na prisão, que o muro é forte;
Como sabemos, sim,
Que cada dia é um ano, um ano cujos dias
Parecem não ter fim.

A balada do cárcere de Reading, Oscar Wilde¹

O fedor é perceptível desde a entrada na primeira seção do Centro de Readaptação para Mulheres em Ilopango (El Salvador). Há superlotação, monotonia, murmúrios, poças nos corredores, dormitórios improvisados, mulheres que deixam suas roupas por todos os lugares e outras que se trocam na frente das demais, algumas andam de sutiã.

Falar aqui de poesia. Falar da beleza. Falar de escritores alheios a suas realidades. Para quê escrever? É a primeira pergunta que faço às moças que se inscreveram na oficina de criação literária a qual organizo pela segunda vez neste centro, com apoio de uma instituição cultural salvadorenha. E ressoa o poema “Porque escrevi”, de Enrique Lihn:

(…)

                Mas escrevi: tive esta rara certeza,

                a ilusão de ter o mundo entre as mãos

(…)

Escrevi, minha escritura foi como um infestante
de flores ázimas mas flores ao fim,

O pão de cada dia das terras áridas:
Uma carapaça de espinhos e raízes.

                (…)

Mas escrevi e morro por minha conta.

Porque escrevi porque escrevi estou vivo.²

 

Para quê a poesia em um país de precariedades? Para quê os valores estéticos? Algumas respondem que serve para explorar seu interior. É claro que têm necessidade de falar de si mesmas, de suas vidas contorcidas pela violência. Em muitos casos, as ruas foram sua casa e ali aprenderam do rancor e a noite entrou em seus corações. Algumas vêm do mundo das drogas, outras tiveram que deixar suas famílias em outros países. Algumas têm um aspecto rude e outras, mais doce e afetuoso. Umas ainda brilham com sua juventude, e outras murcham em lágrimas. Uma das garotas participantes é de Granada, Nicarágua, e declara sua admiração por Rubén Darío. Desde pequena aprendeu o poema “Marcha Triunfal”, e agora no centro de readaptação tem conseguido ler outros poetas, ainda que mantenha sua fidelidade a Darío.

Um dos problemas para adentrar o mundo da leitura é que apenas as garotas matriculadas na escola podem utilizar a biblioteca. Por exemplo, as que terminaram o Ensino Médio não poderiam continuar formando-se.

Recordam. Sentem falta. Anseiam. Porém sabem que algum dia irão, que algum dia poderão tomar café da manhã novamente com seu par, com seus filhos, com sua mãe. Lamentavelmente lá fora a vida será igualmente cruel para muitas, assim como desoladora. O que lhes espera neste país ao sair do cárcere? Me pergunto, e a resposta não é nada iluminada. Que país temos? Roque Dalton nos fala a respeito em seu poelma “El Salvador será”:

 

O problema é que hoje El Salvador

Tem como mil farpas e cem mil declives

Zilhões de calos e algumas aftas

Cânceres cascas caspas shuquedades

Chagas fraturas tremedeiras tufos.

Haverá de dar-lhe um pouco de machete

Lixa em torno aguarras penicilina

Banhos de assento beijos pólvora.³

Assim é, este país necessita de uma grande sacudida, de uma limpeza. Este país é uma serpente.

Na segunda sessão da oficina, as garotas compartilham seus escritos sobre o amor ou o desamor. Algumas, como se fossem crianças, decoram suas páginas com corações, estrelas ou flores. Falam dos dias de praia com quem amaram (ou ainda amam). A lembrança volta como ondas furiosas e o som das chaves só desperta seu desejo de liberdade. Uma palavra que ali tem tanto valor, uma palavra que acariciam desde suas janelas, desde as mesmas quatro paredes “que sem remédio dão ao mesmo número”4, como diria um verso de César Vallejo.

Desde a primeira oficina, realizada em 2013, pude constatar a necessidade que existe neste centro penitenciário, e posso assegurar que nos demais também, da literatura, da arte, de uma educação com mais sensibilidade. É claro que a poesia não poderá nos dar soluções econômicas ou legais, porém nos permitirá adentrar em nosso espírito, explorar nossas turbulências, e da mesma forma estender pontes com os demais, com outras realidades, permitir-nos um modo específico de liberdade. “A experiência estética é um modo – se não o modo – de conhecimento”5. Graças à literatura, nos aprofundamos nos territórios do desejo, do medo, da incerteza e imaginamos mundos paralelos. A leitura, neste caso, tem uma intenção de transformação social, porém sem cair em retóricas desgastadas, mas também abrir as portas da memória, da vida. A literatura é um baile solitário. Desperta nossos sentidos. Alguém poderá pensar que uma oficina de criação literária é uma perda de tempo, mas considero que isto ajuda a que elas possam encontrar outros caminhos. Me pergunto o que teria ocorrido se elas desde pequenas houvessem tido livros, comida, moradia digna, vestuário, amor, palavras de ternura, carícias? É evidente que seus destinos teriam sido diferentes, muito diferentes, e não cometeriam o “erro”, como elas chamam seus delitos, que as levou para trás das grades.

A terceira sessão da oficina foi dedicada ao relato, já que este pode ser útil para fins didáticos. Elas podem falar de si mesmas e criar suas próprias narrativas. Isto implica um processo de introspecção, na medida em que abordam temas como a infância ou fatos significativos de sua vida adulta. Me chamou a atenção que uma garota no final se aproximou para perguntar-me se poderia falar algo negativo de sua vida, e eu disse: “Claro que sim, tudo pode ser tema para um relato” (elas ainda associam a literatura à categoria de bem, quando a intenção desta oficina era principalmente explorar suas vidas, sem estar nos limitando ao que deveria ser). Lemos duas narradoras latinoamericanas: Clarice Lispector e Luisa Valenzuela. Da primeira, o conto “Felicidade clandestina”, do livro homônimo (1971); e da segunda, “Tango”, tomado de “Simetrías” (1993). Da mesma forma, deixei-lhes a leitura “A boneca menor”, de Rosario Ferré. Meu objetivo é que elas possam aproximar-se de vozes femininas, como estas escritoras, que enfrentaram os desafios de escrever em sociedades sexistas. Creio que puderam assimilar melhor esta segunda fase da oficina, pois suponho que se torna mais fácil para elas a decodificação da prosa. Além disso, notei-as mais entusiasmadas, em especial quando lemos Tango”, pois foi propício para que elas viajassem até seus dias de biale. A partir do conto de Lispector, a garota nicaraguense começou a dar ideias de como elaborar um relato sobre sua infância: ela faria sobre o dia de sua graduação.

Na quarta e última sessão foi lido o conto de Katherine Mansfield (Nova Zelândia, 1888-1923): “O Canário”. Este conto detonou memórias. Foi emotivo ver como elas, apesar das distâncias geográficas com a autora e com o cenário do conto, conseguiram aproximar-se da solidão da personagem.

Considero que este tipo de experiências deveria reproduzir-se e ser parte de um programa permanente de educação em contexto de reclusão, e isto implica necessariamente ter uma clara política cultural. É lamentável como as iniciativas neste país não conseguem se manter por falta de visão e compromisso político. A sociedade salvadorenha também necessita experimentar a alegria estética.

 

***NOTAS:

¹ Tradução Prof. Dr. Paulo Vizioli.

² Enrique Lihn “Porque escrevi”, Porque escrevi. Antologia poética (Chila: Fundo de Cultura Econômica, 1996).

 

³Roque Daltom “El Salvador será”. Não pronuncie meu nome (El Salvador: Direção de Publicações e Impressos, 2008)

4César Vallejo, “XVII”, Poesia Completa (D.F., México: Edições Coyoacán, 1997)

5Daniel Innerarity, “Introdução”, em Hans Robert Jauss, Pequena desculpa da experiência estética (Espanha: Paidós, 2002), 12.

 

 

 

*Miroslava Rosales, nascida em San Salvador, El Salvador, é parte da Direção Nacional de Investigações em Cultura e Arte do comitê editorial da revista ARS. É editora internacional da revista mexicana Cuadrivio. Seu trabalho aparece nas antologias Novas vozes femininas de El Salvador (Editorial de la Universidade de El Salvador, 2009), Una madrugada do século XXI (2010), Asd perólas da manhã seguinte (2012), Janelas da Liberdade (Secretária de Cultura, 2014), O Teatro abaixo da minha Pele. (Teatro bajo mi piel. Poesia Contemponânea Salvadorenha) (Kalina Editorial, 2014), Resistência na Terra. Antologia da poesial social e política de novos poetas da Espanha e América (Chile: Ocean Sur, 2014), Segundo índice antológico da poesia salvadorenha (Índole editores/ Kalina editores, 2014); e em revistas dos Estados Unidos, Irlanda, Espanha, Candá, México, Colombia, Peru, Venezuela, Argentina e América Central.

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