Por Amaral Palevi Gómez Arévalo*
Revisão por Mariana Yante
No mês de junho, de maneira semelhante a outros países, celebram-se em El Salvador atividades relacionadas à visibilidade das sexualidades diversas e, neste caso, também dissidentes do padrão da masculinidade hegemônica patriarcal heteronormativa, que privilegia a imagem do homem branco, cristocêntrico, heterossexual e de classe média.
As identidades e expressões de gênero e sexuais diferentes, como as lésbicas, gays, bissexuais e identidades trans (LGBT), são alvo de preconceito, discriminação, violências e mortes. Mas apesar do ambiente hostil, existe um movimento LGBT social e organizado em El Salvador que reivindica direitos frente ao Estado e deveres à sociedade em geral.
A politização das minorias sexuais em El Salvador é um acontecimento recente, mas a existência das dissidências sexuais tem sido parte de uma história não revelada que, nesta segunda década do século XXI, começa a ser evidenciada. Podemos encontrar referências ao LGBT em El Salvador na cultura Náhuat-Pipil, especificamente nos Izalcos, último reduto cultural que foi dizimado por meio do etnocídio de 1932, cujos dados históricos apontam a morte de 30.000 pessoas e a fratura cultural a que esse ato deu causa. Antes da realização deste etnocídio, o alemão Leonhard Schultze-Jena, em 1930, recolheu mais de 50 relatos em língua Náhuat-Pipil (Lara-Martínez, 2014). Em um desses relatos, “A boda do vagabundo”, se fala sobre a penetração de um homem velho por parte de outro mais novo, o qual lhe ganhou uma aposta para se casar com a filha daquele e possuí-lo antes da boda (Lara-Martínez, 2012: 84-86). Lara-Martínez também resgata certa hierarquia social de dominador-dominado segundo os papeis sexuais que dois homens poderiam desempenhar: cuiloni para o passivo e tecuilonti para o ativo (Lara-Martínez, 2012).
Antes do etnocídio dos Izalcos, existe um poema escrito por Francisco Herrera Velado que narra a história de um jovem que, namorando uma das netas de uma velha senhora, é obrigado a se travestir para ser sua dama de companhia e, por tal afronta, é expulso da casa e começa a sobreviver por meio de serviços sexuais para as damas da capital, onde é preso e violentado no quartel da polícia (Lara-Martínez, 2012: 155-168). Ao finalizar a década de 1940, supõe-se que Salarrué, pseudônimo do máximo representante da literatura vernácula de El Salvador, escreveu a peça literária do “Ingrimo”. Nesta peça literária, narra-se a vida de um adolescente, ao longo de cuja trama fala-se no feminino. No entanto, ao final, o leitor constata que se trata um jovem, o qual dá a impressão de ser uma travesti em toda a trama da história (Salazar Arrúe, 2010). Estas narrativas são uma pequena amostra da existência de sexualidades diversas em El Salvador.
Por volta dos anos 1950, em tempo das ditaduras militares, conhece-se a existência de travestis que realizavam práticas sexuais socialmente marginalizadas. Ao falar sobre marginalidade social, estou me referindo aos espaços de expressão de sua identidade de gênero, confinada em lugares que transitavam entre o marginal e o excluído. Um exemplo destes espaços é o mítico salão-bar “La Praviana”, no centro histórico de San Salvador. Ele era reconhecido como um ponto de encontro para homens de classes populares se divertirem, mas também era um local que as travestis frequentavam. Muitas das travestis, para não falar todas, eram pobres que exerciam a prostituição como meio de vida. Tudo isso acontecia no marco de riscos e perigos representados pelo preconceito na sociedade. Por tal motivo, um movimento LGBT sob estas características históricas não tinha nenhuma possibilidade de surgimento.
Na década de 1970, no contexto da “Guerra Fria”, El Salvador viveu a época da repressão política, por meio da implementação das doutrinas de segurança interna, que consideravam qualquer movimento social como um inimigo interno que deveria ser eliminado. Nesse contexto, ainda que não represente o início do movimento LGBT, dá-se um salto qualitativo quanto aos períodos anteriores: cria-se um espaço de sociabilidade gay e travesti, por meio da inauguração da discoteca Oráculos em San Salvador. A discoteca surge em 1976, com a clara motivação de criar um lugar de encontro diferente daqueles existentes no centro histórico da capital. Sua localização foi em uma avenida central de melhor acesso para pessoas de classe média que desejavam evitar os perigos sociais de visitar o centro da cidade. A Oráculos durou cerca de doze anos, incluindo grande parte da época da guerra interna em El Salvador. A Oráculos, para muitos de seus clientes, foi o espaço que possibilitou descobrir sua identidade e um sentido de vida.
No início da década de 1980, as condições sociais e políticas em El Salvador promovem o episódio mais obscuro de sua história contemporânea recente: a Guerra Interna. Nesse contexto, a identidade masculina hegemônica se reafirma nas duas partes envolvidas – a frente guerrilheira Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN) e o Exército, por parte do Governo. Nessa época, existiram poucos espaços para que as identidades sexuais dissidentes emergissem como atores políticos. No Exército, realizar qualquer tipo de discussão sobre sexualidade era impensável.
Ao mesmo tempo, existia um exercício do poder da sexualidade, representado por meio das violações de homens e travestis, sem que se maculasse a masculinidade daquele que violava. Por sua parte, na FMLN, o tema LGBT não entrava nas discussões políticas. Pelo contrário, se uma pessoa lésbica ou gay dava mostras públicas de sua orientação sexual, considerava-se como algo anormal que não podia manifestar-se, mostrando, assim, um preconceito atenuado, mas persistente. As pessoas trans expunham-se a maiores ou menores perigos de acordo a sua classe social, já que as travestis que exerciam a prostituição de rua eram alvo de estupros e morte por parte dos militares, em contraposição às frequentadoras da discoteca Oráculos.
Em 1992, se firmam os Acordos de Paz. Pode-se dizer que a organização de um movimento de pessoas LGBT é produto do pós-guerra. Um primeiro coletivo de travestis começa a se reunir por conta da realização de um projeto de atenção e prevenção do HIV na comunidade gay, impulsionado pela Fundación Nacional para la Prevención, Educación y Acompañamiento de la Persona VIH/SIDA (Fundasida), no ano 1992. No ano 1994, William Hernández e Joaquin Cáceres assumem a coordenação do grupo, outorgando-lhe um caráter mais organizativo, com o objetivo de promover e defender os Direitos Humanos da comunidade LGBT. Seu começo data de 23 de março de 1994, conhecido neste primeiro momento como “Grupo Entre Amigos”.
Paralelamente, houve um processo organizativo de mulheres lésbicas. Depois do término da guerra, as mulheres organizadas na FMLN procuraram novos espaços políticos para canalizar suas demandas, seja na FMLN como partido político ou fora desta. Nessa semeadura de novas rotas, segundo Ready (2007), existiu um grupo de lésbicas salvadorenhas e estrangeiras que se reuniam para refletir sobre a irrupção da mulher lésbica como sujeito político. O nome com o qual foram conhecidas foi “La Colectiva Lésbica-feminista salvadorenha de la Media Luna”, tendo uma vida institucional de 1992 até 1997.
Em junho de 1997, realiza-se a primeira Parada do Orgulho Gay. A parada teve um caráter de protesto, em memória do massacre de 12 mulheres travestis por parte do Exército no ano 1984, tendo a participação de 250 pessoas aproximadamente. Desde essa data até a atualidade, ano após ano, realiza-se este evento, o qual se constitui como o ato político das minorias sexuais de maior vida na América Central. A Parada pela Diversidade Sexual, nome com que é conhecida atualmente, em 2014 logrou reunir 7.000 pessoas com representações de coletivos e organizações LGBT de todo El Salvador.
Na década de 2000, a organização de pessoas LGBT se concentra na área metropolitana de San Salvador. Os coletivos gays têm maior visibilidade, sobretudo pela luta política para obter a distribuição gratuita dos antirretrovirais por parte do sistema público de saúde. Na segunda metade da década, o movimento de mulheres lésbicas tem processos organizativos mais sólidos. Suas propostas de incidência política adquirem uma diversificação de caminhos, por exemplo: a arte, a comunicação ou a investigação, apresentam-se como eixos institucionais para coletivos como Las Desclosetadas, Movimiento Lésbico Juvenil ou Espacio de Mujeres Lesbianas. No que tange às mulheres trans, seus processos de organização adquirem uma independência do movimento gay nesta década.
Na primeira metade da década de 2010, a organização de coletivos LGBT tem enfocado em coletivos fora da área urbana de San Salvador. As demais identidades, como a dos homens trans (Generación HT 503), têm seu surgimento no ano 2013, como o coletivo de jovens universitários na Universidad de El Salvador (Diversidad-UES).
O movimento LGBT em El Salvador está presente. Ninguém pode ignorar a existência de um movimento social que vela pelos Direitos Humanos das pessoas LGBT. Em vinte anos de estruturação, tem-se promovido o questionamento dos padrões binários da sexualidade e do gênero. No entanto, falta muito para a transformação das políticas e discursos públicos impregnados pelo heterossexismo normativo, que naturalizam a homofobia e, com isso, promovem colateralmente as mortes de ódio contra as pessoas LGBT.
REFERÊNCIAS
– Lara-Martínez, Rafael (2014): Mitos en la lengua materna de los Pipiles de Izalco en El Salvador. San Salvador: Editorial UBD.
_____ (2012): Indígena, cuerpo y sexualidad en la literatura salvadoreña. San Salvador: Editorial UBD.
– Ready, Kelley (2007): “The Uneasy “Informal Consensual Union” of Lesbianism with Feminism in El Salvador”, en Culture, Health & Sexuality, 9, Suplemento 1, p. S7.
– Salazar Arrué, Salvador (Salarrué). Narrativa Completa II. San Salvador: Dirección de Publicaciones e Impresos, p. 180, 2010 [1ª edición 1999].