ANÁLISE: O Jiote, as flores e a cruz – a festa das flores e das palmas

  Por Amaral Palevi Gómez Arevalo*   Todos os anos celebra-se no início do mês de maio a Festa das Flores e das Palmas. Esta festa tem uma dupla origem. Por um lado a tradição católica, com a celebração no dia 3 de maio da Santa Cruz de Roma; e por outro a tradição indígena dos rituais em honra ao Xipe Totec. Nesta análise abordamos o significado desta festa para a cultura salvadorenha. O Xipe Totec é uma das divindades da cosmologia Mesoamericana (região de influência cultural Náhuatl e Maya desde o centro do México até a Costa Rica), mais complexa e enigmática. Por uma parte, ela é uma das mais importantes, pois relaciona-se como o deus da primavera, da fertilidade, com a renovação da vegetação e da chuva fecundante. A segunda acepção de importância é aquela que relaciona ao Xipe Totec como um deus da guerra. Uma terceira ideia, pouco conhecida, é a que o relaciona como patrono dos ourives e da juventude. A acepção que utilizamos aqui é a segunda, a que relaciona ao Xipe Totec como deus da renovação. A tradução de seu nome nos apresenta a visão enviesada dos espanhóis. Para Xipe: “Esfolado” e para Totec: “Nosso Senhor” e sua estrutura gramatical resultaria em Nosso Senhor Esfolado. Na época clássica das culturas mesoamericanas, os rituais a Xipe Totec, tinham uma relação simbólica e não literal. A renovação era compreendida como uma ação interior, onde os homens e mulheres deviam fazer florescer suas virtudes desde seu âmago com o exterior. Mas como a história é cíclica, a um tempo clássico continua-lhe um tempo de decadência, que coincidiu com a chegada dos espanhóis. Os ritos e celebrações que se organizavam em honra a Xipe Totec tinham como principal atividade esfolar seres humanos, exclusivamente homens escravos ou prisioneiros de guerra, dos quais se retirava a pele e colocava-se à imagem do Xipe Totec, perdendo-se, portanto, toda a significação de renovação interna. Com a chegada dos espanhóis às terras de El Salvador, que em esse momento histórico era conhecido como Cuscatlane habitado pelos Pipilespertencentes ao grupo cultural Náhuatl, os ritos e celebrações indígenas foram proibidos. A imposição da fé católica foi um intento de suplantar as crenças indígenas, mas estas em vez de apagarem-se, misturaram-se em um sincretismo. Como mostra de tal feito histórico nesta festa do dia 3 de maio agregou-se à celebração do Nosso Senhor Esfolado a celebração da Santa Cruz de Roma. Os indígenas misturaram a celebração católica da Santa Cruz de Roma com o ato religioso da renovação interior do Xipe Totec. Esta mescla foi feita através da utilização da árvore de Jiote, a qual troca sua casca por outra nova, representando o ciclo natural da renovação de forma concreta. Neste sentido a cruz, símbolo da fé católica, e a árvore de jiote, representação da religião Pipil, unem-se. As datas de celebração eram coincidentes, ambos os atos no início de maio, e assim elaboram-se as cruzes com madeira do jiote. Diante desta cruz colocam-se diferentes tipos de frutas tropicais como abacaxis, laranjas, mangas, tangerinas, mamões, abacate, cajus, cocos, seriguela, bananas e outras que só existem na região mesoamericana e em El Salvador: paternas, coyoles, zapotes, nisperos, entre muitas outras. Colocam-se ainda leguminosas como milho, arroz, cana-de-açúcar e feijão. Também é característico adornar a cruz com muitas flores, principalmente a “Flor de Mayo” (o mais parecido no Brasil é o Jasmim Vapor ou Jasmim do Mato), as quais estão em plena época de floração que anuncia a chegada próxima das chuvas do inverno. As frutas, as flores e os grãos cumprem a função tanto de oferenda e petição. Oferenda como gratidão pela colheita do ano anterior. Petição para que a época de chuva seja boa, com muita água quando o milho e feijão semearem e com poucas chuvas para a colheita. Na Guatemala e no México o dia 3 de maio celebra as mãos que trabalham a terra, os que constroem casas e prédios, os pedreiros. Em El Salvador a celebração marca o inicio da chuva e, por conseguinte a semeadura do milho, grão básico na alimentação cotidiana mesoamericana e também as mãos que trabalham a terra. Que o sentido, da renovação e construção haja permanecido até nossos dias, em três países diferentes, dá conta da importância de tal celebração. Para o caso de El Salvador, Panchimalco tem a melhor representação desta tradição. Assentada na zona central do país encontra-se a antiga vila de Panchimalco. De origem indígena, seu nome pode-se entender como o lugar de escudos e bandeiras, que em um uso mais fluido faz referência a uma fortaleza, devido a sua localização no pequeno vale formado por morros e montanhas. Nesta vila, todos os anos realiza-se uma das mais importantes festas de El Salvador: a festa das flores e das palmas. A festa começa com os preparativos de um a dois dias de antecedência. Os homens colhem as “flores de mayo” e de outras variedades, e ao mesmo tempo desde o litoral são trazidas palmas de cocos. Também colhem-se frutas locais A noite anterior à celebração as palmas tem suas folhas desmembradas, para que só a raiz da folha permaneça. Ao amanhecer, homens e mulheres começam a inserir as flores nas raízes dessas folhas, criando um leque multicolorido. As mulheres, meninas, adultas e idosas, vestem-se com saias compridas multicores, as quais podem representar a própria natureza complexa e exuberante. Levam blusas também coloridas e, para finalizar, em suas cabeças colocam mantos que lembram a tradição muçulmana trazida pelos pardos espanhóis que chegaram às terras de Cuscatlan. Os homens por sua parte vestem-se com calças e camisas brancas, talvez como reminiscência da ideia da transmutação interior que os antigos rituais a Xipe Totec na época de ouro das culturas Mesoamericanas faziam. Às quatro à tarde o sol pinta de dourado os morros e montanhas que circundam Panchimalco, fogos de artificio indicam que as procissões devem iniciar. As mulheres com as palmas acompanham as imagens da Virgem Maria e a Virgem da Concepção. Os homens levam em vigas as frutas que se oferecerão à Santa Cruz de Roma, na qual o ritual ao Xipe Totec perdura neste sincretismo até nossos dias. A alegria inunda as ruas e praças do Panchimalco e alguns jovens e adultos performam danças folclóricas que são acompanhados pela percussão de instrumentos tradicionais. Cada casa e praça têm cruzes feitas de jiote, onde as frutas e as flores são colocadas. A celebração do Dia da Cruz, onde os rituais antigos do Xipe Totec estão presentes, nos fazem um chamado a lembrar da mistura do povo salvadorenho. Ser pardos, não é um defeito como muitos falam; ao contrário, é uma riqueza que devemos preservar e querer divulgar. Neste dia 3 de maio espero que cada um de vocês possa ter tido um momento para refletir sobre a renovação interior que o Xipe Totec e a cruz lembram-nos, e a esperança que a primavera trouxe com ela.   *Amaral Palevi Gómez Arevalo é Docente de Ensino Superior, Doutor em Estudos Internacionais em Paz, Coonflitos e Desenvolvimento (Universitat Jaume I), Graduado em Ciências da Educação (Universidad de El Salvador). Gestor de projetos de desenvolvimento comunitário com jovens, homens e atenção à população LGBT. Promotor de cultura de paz, a partir de meios audiovisuais

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