Por Rudis Ylmar Flores Hernández*
Tradução por: Mariana Yante
El Salvador, da mesma forma que muitos países da América Latina, compartilhava características similares aos demais na década de oitenta; todos viviam a repressão das ditaduras militares, ao passo que os espaços de participação política se fecharam, produto dos golpes de Estado gerados pelos militares, que transferiam o poder de mão em mão. É importante assinalar que a sociedade salvadorenha viveu na década de oitenta do século passado o início de uma guerra civil marcada pela falta de espaços democráticos que permitissem a participação direta da população na tomada de decisões. Esta luta dura doze anos e culmina com os Acordos de Paz em 1992.
A história de El Salvador, desde meados do século XX, manifesta-se por um largo período de profundos conflitos políticos, econômicos e sociais, que levaram o País ao confronto armado, pela falta de democracia e de espaços políticos, que refletiam a ausência de participação política da sociedade civil. As ditaduras militares foram durante muitos anos a forma de governo imposta sob a repressão. A luta dos movimentos sociais obrigou aos militares a gerarem mudanças nas estruturas políticas, passando a conformar uma ditadura militar orgânica, vinculada aos partidos de direita.
Sob este panorama, os esquadrões da morte começaram a executar o genocídio do povo salvadorenho, assassinando campesinos, estudantes, dirigentes sindicais, mestres, dirigentes políticos de esquerda e sacerdotes, como o padre Rutilio Grande que, juntamente com dois acompanhantes, foi assassinado em 12 de março de 1977, quando se conduzia a El Paisnal, no departamento de Chalatenango. O trabalho do sacerdote Rutilio Grande se caracterizou por defender os mais despossuídos e denunciar os atropelos cometidos pelas autoridades, a partir de sua paróquia de Aguilares, no departamento de San Salvador. O padre Grande criou as Comunidades Eclesiales de Base (CEB), ensejando reações adversas de parte dos latifundiários da zona, que o qualificaram como um agitador comunista. O sacerdote Rutilio Grande é considerado o primeiro grande mártir da Igreja salvadorenha.
Oscar Arnulfo Romero é um sacerdote conservador que, em certas ocasiões, foi criticado por setores progressistas, que o consideravam como um arcebispo simpatizante da oligarquia desde seu início na pastoral em 1944, pela forma como, a partir de uma mensagem religiosa, entendia a realidade política e econômica do País. O assassinato de seu melhor amigo Rutilio Grande marca um antes e um depois na vida de Monsenhor Romero. Ao inteirar-se dos assassinatos, foi ao templo onde repousavam os três corpos e celebrou a missa. Na manhã do dia seguinte, depois de reunir-se com os sacerdotes e conselheiros, Romero anunciou que não assistiria a nenhum evento ou atividade governamental, nem a nenhuma reunião com o Presidente – sendo ambas as atividades tradicionais do posto – até que a morte do sacerdote fosse investigada.
A partir deste momento, converteu-se em uma referência em nível nacional e internacional do que ocorria em El Salvador, denunciava sistematicamente o governo militar e a violação aos Direitos Humanos, exercida pelo Estado e pelos grupos paramilitares, convertendo-se em uma das vozes mais respeitadas dentro da Igreja Católica latino-americana.
“Eu queria exortar, de maneira especial, os homens do exército. E, em concreto, as bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quarteis… Irmãos, são de nosso mesmo povo. Matam a seus mesmos irmãos campesinos. E diante de uma ordem de matar que se dê a um homem, deve prevalecer a Lei de Deus, que diz: “Não matarás”. Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a Lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém tem que cumpri-la. Já é tempo de que recuperem sua consciência, e que obedeçam antes à sua consciência que à ordem do pecado. A Igreja, defensora dos direitos de Deus, da Lei de Deus, da dignidade humana, da pessoa, não pode ficar calada ante tanta abominação. Em nome de Deus, pois, e em nome deste sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu cada dia mais tumultuosos, lhes suplico, lhes rogo, lhes ordeno em nome de Deus: Cesse a repressão”. (Homilia dominical, 23 de março de 1980).
Em 24 de março de 1980, o defensor dos pobres, o que se converteu na voz dos sem voz, enquanto celebrava uma missa na igreja Divina Providencia, na capital, morreu atravessado por uma bala que destroçou seu coração. A partir de suas homilias, Monsenhor tratou de inculcar em seu povo a fé em Deus. “Deus é o Deus de Jesus Cristo. O deus dos cristãos não tem que ser outro, é o Deus de Jesus Cristo, o do que se identificou com os pobres, o do que deu sua vida pelos demais, o Deus que mandou seu Filho Jesus Cristo ter uma preferência sem ambiguidades pelos pobres. Sem depreciar aos outros, os chamou a todos ao campo dos pobres para poder-se fazer iguais a ele. Ninguém está condenado em vida; somente aquele que rechaça o chamamento de Cristo pobre e humilde e prefira mais as idolatrias de sua riqueza e de seu poder” (Homilia 27-05-1979).
O Vaticano e, em especial, o Papa Francisco, após sua chegada a Roma e depois de 35 anos do martírio de Romero, decidiu convertê-lo em beato, por considerar que é um mártir da igreja universal e que seus algozes atuaram “por ódio à fé”. No entanto, estando tão claras as virtudes de Monsenhor, surgem perguntas de por que a Igreja Católica se negava a beatificá-lo. Paglia, presidente do Conselho Pontifício da Família e postulador da causa de beatificação de Monsenhor Romero, acusou a direita salvadorenha e da Igreja de frear o processo de assassinato do prelado; estes enviaram uma quantidade grande de cartas nas quais pediam ao Vaticano que não beatificasse ao mártir – responsabilidade que não quiseram assumir os dois antecessores do Papa Francisco.
É necessário destacar que Romero, a partir de seu martírio, se converteu em santo para os mais pobres; durante os 35 anos de sua morte, sempre as comunidades, os estudantes, os campesinos, as mulheres, as crianças, os anciões lhe recordam como o cura que deu sua vida por um futuro melhor, por deter os atrozes crimes perpetrados pelos esquadrões da morte, criados pelo autor intelectual de sua morte, o Major Roberto d’Aubuisson.
O ato de beatificação está marcado por essa distância entre a igreja tradicional e a igreja comprometida; o ato não deixou de ser a parte formal, onde estará a alta hierarquia da Igreja Católica e que tanto no passado conspirou para assassinar o Monsenhor, que tratou de deter o processo no Vaticano, e que hoje em dia dá as costas aos problemas que vivem as grandes maiorias.
É importante assinalar que têm ocorrido atividades, como vigílias, tanto da parte oficial da Igreja, como das Comunidades Eclesiales de Base, surgidas durante o conflito armado. Os grandes meios de comunicação de direita vendem a ideia de que Romero é mártir por amor; os mais pobres o recordam como o máximo defensor de seus interesses, e que foi assassinado por ódio à fé. Seguramente Romero estará, como sempre, no lugar privilegiado dos mais despossuídos, com os que sempre o levaram em sua mente e em seu coração durante os trinta e cinco anos de sua morte, e que o santificaram durante todo este tempo, juntamente com todos os povos da América Latina.
*Rudis Yilmar Flores Hernández é Sociólogo, Professor da Universidad de El Salvador, Campus San Miguel, C.A.