ANÁLISE |Educação formal e classes sociais na Guatemala: mais além do racismo

Por Ana Clarice Oliveira*

Tradução por: Joelma Gusmão

Revisão por: Mariana Yante

 

No planalto guatemalteco, há uma geração ávida por formação acadêmica e profissional. São os herdeiros dos horrores do terremoto de 76, da violência da guerra civil e das mais diversas formas de discriminação e de racismo que as classes dominantes insistem em reproduzir e tirar disso todo o proveito que lhes seja possível. É evidente que os guatemaltecos  daqueles momentos têm sido testemunhas de muita história e vítimas de muitas injustiças. Porém conquistaram muito. Têm sonhos e os estão perseguindo. As novas gerações, por sua vez,  têm encontrado seus povos e lugares novamente de pé. Muitos deles tampouco têm sido testemunhas da assinatura dos Acordos de Paz. No entanto, ambos os eventos marcaram de forma tão decisiva a vida de seus ancestrais, que o eco das lembranças e das feridas de seus feitos segue vivo nas histórias do presente.

Se nos centramos no caso de San Juan Comalapa, nos encontramos com uma população majoritariamente maia, assim como em todo planalto. São trabalhadores, quase todos agricultores, despossuídos de qualquer pedaço de terra ou donos de pequenas propriedades rurais. Especialmente na zona rural, há alguns que se dedicam exclusivamente à semeadura e à colheita de milho e outros cultivos, seja por subsistência ou para o mercado externo.  Porém o povo também se destaca pelas trajetórias de seus profissionais, que, em muitos casos, conseguem conjugar a agricultura à rotina de suas profissões. São professores, funcionários públicos, comerciantes, prestadores de serviços, entre outras categorias profissionais. Também artistas e/ou ativistas.

Como nos demais países da região, não resta muita gente que não esteja incluída nas grandes proporções da classe trabalhadora ou entre poucos representantes das classes dominantes, que detenham o controle sobre as atividades produtivas e as instituições públicas. As classes médias são muito pouco representativas. Nesses termos, Comalapa quase poderia ser considerada uma exceção. Mas mesmo tendo acesso ao mercado de trabalho liberal, seus habitantes não deixaram de pertencer à classe trabalhadora que, em muito, se vê afetada pela presença ausente do Estado e de políticas públicas que garantam sua segurança jurídica e/ou social.

Ao testemunhar a força do racismo e as mais diversas formas de discriminação perpetradas contra as populações maias no país, as novas gerações de jovens, em grande parte apoiados por seus pais, mães, avôs e avós, conhecedores de sua própria história, sabem que o domínio do idioma espanhol se impôs como elemento chave no acesso ao mercado de trabalho.

Nesse contexto, o destino e a paixão destes jovens são o reflexo da busca de um futuro melhor, mais inclusivo, menos desigual, onde alguém possa realizar-se como pessoa, sem sofrer nenhuma discriminação por ser indígena, maia, profissional, artista, guatemalteco/a, mulher, jovem, agricultor(a), e/ou qualquer outra forma de identidade possível. Para muitos deles, a educação formal parece ser o mais atrativo e promissor entre os caminhos que resultem factíveis. De modo que, estes e estas comalapenses fazem uso do recurso de que dispõem para profissionalizarem-se e “salir adelante”, como geralmente se repete por lá. Esse ditado faz parte de uma linguagem local e é a expressão viva da busca de um sonho, que está diretamente associado a valorização positiva da educação formal de um povo. De modo que, o uso e o aprendizado do espanhol tem se transformado em algo mais do que a imposição de um idioma e uma cultura distante, mas em um marco de um sistema educativo excludente e discriminatório. Para os comalapenses de hoje, falar castelhano também é parte de uma estratégia de inclusão social.

Mas a história não se acaba aí. Em meio a tudo isto, a resistência dos ativistas e intelectuais maias parece encontrar-se em um dos seus melhores momentos. No ano passado, se pôs em marcha a Universidade Maya Kaqchikel. Comalapa, lar de muitos agricultores, artistas, ativistas e profissionais, atualmente é também uma das subsedes desta recém-nascida instituição. A primeira carreira oferecida é uma Licenciatura em Aprendizagem e Vivência do Idioma Kaqchikel e História, que, hoje em seu terceiro semestre, oferece uma oportunidade de formação a quase 90 estudantes do departamento de Chimaltenango.

Nas palavras do ativista maia e antropólogo, Gérman Curruchiche, “o objetivo principal é a recuperação do idioma que vem sofrendo diminuição de falantes”. Sim, a recuperação do idioma Kaqchikel!

Fica claro que a hegemonia do idioma espanhol na região é resultante de encontros conflituosos entre as populações locais e as classes dominantes, nos quais o racismo tem marcado presença de forma decisiva e persistente. Porém para muitos dos kaqchikeles, a defesa de sua identidade maia continua sendo uma de suas prioridades. E tudo indica que os esforços de resgate dos idiomas indígenas abrem novas portas para o efetivo bilinguismo na região. Está-se impulsionando a valorização positiva da(s) cultura(s) maias(s) através da multiplicação de educadores comprometidos com a luta contra o racismo, pelo respeito à diversidade e à defesa dos direitos da população Maia, Xinca e Garínfuna a viver e a expressar-se em seus idiomas maternos, dando-lhes nova vida e significado à diversidade cultural.

Há muito que avançar na construção de uma Guatemala mais justa e menos violenta. Os meninos e meninas das aldeias requerem mais atenção e oportunidades e o trabalho infantil deve ser enfrentado, oferecendo oportunidades de acesso a recursos às famílias. Os males ocasionados pelo poderio das multinacionais agrícolas e a concentração de terras e das riquezas nas mãos de grandes proprietários são outras das questões essenciais. Além disso, a batalha para tornar efetivos os direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores do campo e das cidades, assim como a defesa dos direitos de cidadania, são trajetórias incompletas até a consolidação do Estado de Direito na região. Os povos indígenas da América Latina formam parte desta luta contra as mais diversas formas de exploração.

Porém, desde cedo, as conquistas e compromissos de inclusão e defesa da diversidade refletidos na abertura da referida instituição, são merecedores de reconhecimento e apoio. Ainda seguindo ao referido intelectual, trata-se de uma experiência de educação superior e “vale bem à pena falar dela”.

 

*Ana Clarice Oliveira é graduada em Ciência Sociais pela Universidade Federal do Ceará, mestra em Antropologia pela Universidad de Sevilla.

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