Por: Arno J. Argueta*
Tradução: Mariana Yante
Quando, ao final de 2012, o periódico satírico The Onion publica que o ditador coreano Kim Jong Eun é considerado “O Homem mais sexy”, o periódico oficial em inglês do partido comunista na China, o People’s Daily, decidiu reimprimir a história junto a 55 páginas de imagens para provar a sarcástica afirmação do periódico estadunidense. Segundo Bakhtin, o carnavalesco é o espaço onde (1) interagem diferentes grupos que regularmente não estão em contato, (2) onde a conduta excêntrica é bem-vinda, (3) onde supostas separações dialéticas ou dicotômicas desaparecem, (4) e é o lugar no qual se permitem os atos de sacrilégio.
Quando a realidade e a sátira se confundem e se cruzam, abre-se um espaço que permite entender esta confusão e zombaria como sacrilégio, ao ser ponto de confluência no qual discursos hegemônicos e subalternos se atritam pelo controle sobre o discurso do correto e do incorreto. Esses conflitos, portanto, não são sobre aspectos indenitários, mas pela capacidade de definir o sacrílego, para utilizar as ideias de Bakhtin, e assim apontar certos discursos como mais morais ou éticos que outros. Este precedente é citado por Baudelaire, ao falar da famosa caricatura de Philipon, na qual, começando com uma pera, Phillipon termina desenhando a face do rei Luis Felipe. Assinala Baudelaire que cortar uma pera, então, tornou-se um ato subversivo. A caricatura cria um espaço carnavalesco da realidade, onde o rei, que era uma figura sagrada, é atacado. A dessacralização do rei, nesse caso, evidencia-se através da caricatura. Contudo, no caso da Guatemala, a mesma caricaturização se concretiza, além de imagens, por meio de zombaria e da falta de respeito a certas figuras políticas. O exemplo perfeito é o da vice-presidente Rossanna Baldetti. Baldetti asseverou, depois que seu filho tirou um selfie com o Papa, que “viajar à Europa é mais barato que ir a El Péten[1]”. Isso foi tomado como piada e a zombaria não se fez esperar.
O selfie por si só é um retrato que poderia ser tomado até por caricaturesco na acepção do que Baudelaire fala sobre o retrato do rei da França. Para Baudelaire, a pera chega a significar o rei; no caso em análise, a ideia de viajar à Europa para fazer um selfie com o Papa tem sido ligada à vice-presidente. Também o chamado “farinhaço” tornou-se marca de Baldetti, também a ridicularizando. Depois que se lançou farinha sobre a vice-presidente, após uma assembleia do congresso, Baldetti foi internada em um hospital. O “farinhaço” causou tanta zombaria que o desfile bufão anual da universidade de San Carlos não perdeu a oportunidade de explorar o fato, seguindo os “memes” e brincadeiras que surgiram na internet, onde se compara Baldetti com o Coringa de Batman. Dizer que quatro pessoas estão presas por conta do farinhaço e estão sendo levadas à corte em um país onde a porcentagem de casos resolvidos é mínima pareceria parte dessas brincadeiras, e, todavia, é verdade. Assim, a sátira se apresenta como uma das poucas formas de que faça sentido viver na Guatemala. Essa crítica, apresentada através da sátira e da hipérbole, é utilizada não apenas por aqueles que zombam de Baldetti, mas também pela própria Baldetti, ao reagir hiperbolicamente a uma bolsa de farinha em sua cara. E o que poderíamos dizer do “merequetengue” causado pelo caso Ríos Montt? Esse circo ambulante no qual se permite impunidade a um sujeito, devido ao fato de que certos segmentos têm medo de que o país desmorone, em favor do qual o Congresso emitiu um ponto resolutivo 3/2014, que nega o genocídio supostamente para “manter o espírito de conciliação”[2].
A emissão do ponto resolutivo resultou, também, em zombaria. Nesse caso, não foi The Onion, mas o blog El Espurio quem aproveitou para escrever um artigo onde, através de outro ponto resolutivo, o Congresso aprova que a “Guatemala já ganhou um mundial de futebol”[3]. Essa ênfase na seleção nacional de futebol, o qual se reconhece como um esporte em fracasso constante, apesar de ser um dos que recebem mais dinheiro do Ministério de Cultura e Esportes, aponta o reconhecimento da Guatemala como Estado falido. Em outras palavras: se a seleção nunca foi a um mundial, isso não importa, porque, com um ponto resolutivo, isso pode ser mudado.
Assim, se na Guatemala há um racismo estrutural, há discriminação por raça e gênero, e se houve genocídio, isso não importa, porque, com um ponto resolutivo, isso pode ser mudado. Definitivamente, pensar que esta “lei” pode mudar a maneira de pensar o conflito interno armado é uma visão muito infantil disso tudo. De fato, o ponto resolutivo é o produto do medo das classes hegemônicas de ver uma resposta, alguém mais, definindo os limites do “correto”. Portanto, Ríos Montt não podia ser extraditado e por isso um grande circo foi armado em torno de sua demanda – se Ríos Montt é culpado de genocídio, admite-se que há um racismo estrutural e a resposta a esse racismo é a perda de poder dos poderes hegemônicos guatemaltecos. Quiçá a ironia da vida seja a forma de entender esses processos na Guatemala. A vida do ser humano deixa de ser sagrada; o grande carnaval da política guatemalteca se encarrega de dessacralizar as vidas perdidas no conflito interno armado. Entretanto, na Guatemala, ninguém quer saber mais disso. Cansados dos discursos partidários, cansados do constante abuso, muitos de nós nos refugiamos em tratar de ignorar todos esses fatos. É por isso que o discurso do “espírito de reconciliação” encontra respaldo; não porque na Guatemala alguém queira reconciliar-se com alguém, mas porque o oposto da reconciliação é a guerra, e guerra é violência, e nela a Guatemala já vive há mais de 5oo anos.
*Arno Argueta é doutorando em Português e Espanhol na Universidade do Texas/Austin.
Referências Externas:
[1][1]http://www.prensalibre.com/noticias/politica/baldetti-viaje_a_europa-peten-vaticano-selfie-papa_francisco_0_1129687198.html
[2]http://www.s21.com.gt/nacionales/2014/05/13/congreso-aprueba-punto-resolutivo-que-niega-existencia-genocidio
[3]http://elespurio.wordpress.com/2014/05/14/diputados-del-congreso-aprueban-que-no-hay-pobreza-en-guatemala/
[2]http://www.s21.com.gt/nacionales/2014/05/13/congreso-aprueba-punto-resolutivo-que-niega-existencia-genocidio
[3] http://elespurio.wordpress.com/2014/05/14/diputados-del-congreso-aprueban-que-no-hay-pobreza-en-guatemala/